Grupo conservador adquire EA em transação bilionária | O que isso significa para a diversidade nos jogos?
A Electronic Arts (EA) anunciou, quase sem alarde, um acordo histórico de venda da empresa por US$ 55 bilhões para um consórcio liderado pelo Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita (PIF), pela firma de private equity Silver Lake e pela Affinity Partners, empresa do genro de Donald Trump, Jared Kushner. Com isso, a criadora de franquias como The Sims e Mass Effect deixará de ter capital aberto e se tornará uma empresa privada.
O negócio, a ser finalizado até 2026, representa o maior “buyout” (aquisição alavancada) da história, superando inclusive a compra da Activision Blizzard pela Microsoft em valor total. O CEO da EA, Andrew Wilson, permanecerá no cargo e a sede continua na Califórnia. Mas o que isso significa para o futuro da empresa?
Este vídeo da tvPH no Youtube resume perfeitamente o que pode acontecer com o futuro da franquia em termos de empresa, mas além disso, o consórcio comprador traz perfis altamente conservadores. Jared Kushner, além de ser membro da família Trump, fundou a Affinity Partners após atuar como conselheiro na Casa Branca. Já o fundo soberano saudita PIF pertence a um regime conhecido por violações de direitos humanos e posições ultraconservadoras, em especial contra pessoas LGBTQ+, cuja existência é criminalizada no país.
Não por acaso, analistas apontam que a Arábia Saudita está menos interessada em jogos e mais em adquirir influência cultural sobre centenas de milhões de jogadores mundo afora. Trata-se de “geopolítica do entretenimento”, um esforço de “sportswashing” para limpar sua imagem global investindo em esportes e games. “A Arábia Saudita não está comprando jogos — está comprando influência cultural… Com Kushner no meio, adiciona uma camada trumpista ao negócio”, resume uma análise do portal brasileiro B9.
Histórico conservador vs. cultura inclusiva da EA

O choque de valores entre os novos donos e a cultura dos jogos da EA é evidente. A Arábia Saudita tem leis severas contra a população LGBTQ+. Relações entre pessoas do mesmo sexo são ilegalizadas, com penas que podem chegar à morte. O governo Trump, por sua vez, adotou políticas consideradas hostis à causa LGBTQ+ (como a proibição de pessoas trans nas Forças Armadas), alinhando-se a pautas da direita cristã nos EUA. Esse histórico conservador contrasta com a EA, que nos últimos anos buscou enfatizar diversidade e inclusão em seus games.
Franquias emblemáticas da empresa como The Sims e os RPGs da BioWare (Mass Effect, Dragon Age) foram verdadeiros pioneiros na representação queer nos videogames, celebrando relacionamentos entre personagens do mesmo gênero, opções de gênero fluido e narrativas inclusivas. The Sims desde sua primeira edição (2000) permite que Sims formem casais homoafetivos, algo inovador na época, e o estopim que inclusive alavancou o sucesso do game. Expansões recentes adicionaram pronomes neutros e celebrações do Orgulho, reforçando seu status de espaço seguro para jogadores LGBTQ+. Já Mass Effect e Dragon Age quebraram tabus ao incluir romances gays e lésbicos em jogos AAA de grande orçamento, abrindo caminho para maior representatividade na indústria.
Agora, com o controle da EA nas mãos de um regime que criminaliza a homossexualidade e de um investidor ligado a uma administração de viés conservador, surgem temores de que essa trajetória inclusiva possa ser interrompida. A própria noção de personagens abertamente LGBTQ+ ou temática queer nos jogos da EA passa a ser questionada diante dos novos donos.
Como apontou um comentarista, “isso significa que Mass Effect, Dragon Age, The Sims e qualquer outro título minimamente queer serão mortos de vez”, uma visão pessimista, mas amplamente compartilhada nas redes. Em tom satírico, o ex-roteirista sênior da BioWare Patrick Weekes imaginou uma conversa entre os compradores e a EA: “Compradores: Então, seus jogos… tiros e futebol, certo? EA: Uhum, principalmente tiros e futebol. Compradores: Sem coisa de gay? Sem ‘política’ que não vamos gostar? EA: Hahaha, definitivamente não! (agora, dá licença que preciso fechar um estúdio rapidinho)”. A piada ácida resume o medo de que os novos proprietários possam censurar conteúdo LGBTQ+ e priorizar apenas jogos “seguros”, ou seja, esportes e tiro, sem representação diversa ou crítica social.
Reações da comunidade gamer LGBTQ+ e desenvolvedores

A notícia da venda repercutiu como um terremoto na comunidade gamer, em especial entre jogadores LGBTQ+ e aliados. Não demorou para que redes sociais como Twitter, Reddit e Bluesky se enchessem de manifestações de choque, medo e indignação.
Muitos fãs veem a aquisição como uma ameaça direta aos jogos da EA que amam. “QUE DROGA, ISSO É PÉSSIMO”, desabafou um usuário, “as pessoas não têm noção do quão ruim é ter os sauditas e o sobrinho do Trump controlando todas as franquias da EA”. Outro comentou com descrença: “este é o fim de Mass Effect, Dragon Age, The Sims e de qualquer representatividade queer neles”. A preocupação é especialmente grande porque essas séries criaram comunidades sólidas de fãs LGBTQ+ ao longo dos anos, jogadores que encontraram nesses títulos um reflexo de si mesmos raramente visto em outros games mainstream.
Desenvolvedores e profissionais da indústria também se manifestaram. O designer Mike Bithell lembrou ironicamente que historicamente era a EA quem comprava e desmontava estúdios, “não o contrário”. Outros expressaram solidariedade aos funcionários da EA e de seus estúdios internos, que agora encaram um futuro incerto. “Eu não queria estar sentado numa cadeira da BioWare agora”, comentou um jornalista ao notar que o estúdio canadense, já fragilizado por reestruturações, pode enfrentar consequências graves.
De fato, BioWare é citada por muitos como a mais vulnerável nessa mudança: seus RPGs focados em narrativa diversa não têm o apelo de massa de um FIFA ou Madden, o que poderia torná-la alvo fácil de cortes. “Todo mundo que já amou um jogo da BioWare está se sentindo bem desolado com o futuro do estúdio… isso pode ser o toque de finados”, escreveu um ex-funcionário da empresa. Nas redes, fãs imploram que a EA venda a BioWare a outra empresa antes que seja tarde.
No fandom de The Sims, onde a inclusão sempre foi celebrada, as reações variam de pânico a cautela. Criadores de conteúdo e influenciadores da comunidade Simmer expressaram preocupação profunda com o futuro da franquia. A youtuber lilsimsie publicou um desabafo dizendo que a notícia lhe pareceu “devastadora” e que The Sims é mais do que um jogo, é uma comunidade diversa que precisa ser protegida. Muitos jogadores temem que expansões futuras possam remover elementos de representatividade (casamentos do mesmo sexo, opções de gênero etc.) para agradar aos donos ultraconservadores.
“Estou genuinamente preocupada com o que isso significa para mim e outros criadores de Sims”, declarou uma streamer, “meu coração está com a equipe de desenvolvimento do The Sims; imagino quão difícil deve ser para eles continuar lançando um pacote essa semana com tudo isso acontecendo”.
Por outro lado, há quem pregue calma e adote uma visão pragmática. Parte da comunidade acredita que, por mais conservadores que sejam os donos, eles não vão querer perder dinheiro alienando os jogadores. “Pode não ser tão catastrófico quanto parece” – argumentou um fã no Twitter – “Mesmo se os novos donos forem sauditas, ainda é um negócio, e eles não vão arriscar vendas. Não acho que veremos a representação LGBTQ+ ser removida; o problema maior é que talvez queiram só lucrar ainda mais”. Esse ponto de vista sugere que a pressão comercial dos mercados ocidentais (onde a inclusão é valorizada por boa parte do público) poderia frear eventuais investidas censoras. Ainda assim, prevalece a desconfiança.
Em uma enquete com mais de 3 mil jogadores no site SimsCommunity, 68% votaram que a franquia The Sims irá piorar sob os novos proprietários, contra apenas 3% que acham que pode melhorar. Além disso, 43% dos votantes afirmaram que provavelmente deixarão de comprar conteúdos futuros de The Sims após a compra. Esses números refletem um sentimento majoritário de pessimismo e traição na base de fãs.
Para onde vai a EA?

No balanço de tudo, o clima é de apreensão. De um lado, existe a chance de nada mudar radicalmente no curto prazo, afinal, os novos donos podem preferir não mexer em conteúdos populares para evitar perdas financeiras ou desgaste com a opinião pública ocidental. Talvez The Sims mantenha casamentos entre Sims de qualquer gênero, e Mass Effect continue permitindo ao jogador escolher com quem se envolver, mantendo a tradição. Talvez o PIF e Kushner enxerguem o investimento apenas como um negócio lucrativo e deixem a EA tocar seus jogos como antes, desde que as receitas sigam crescendo.
Por outro lado, as dúvidas persistem como uma nuvem negra sobre o futuro da editora e de seus estúdios. O simples fato de a EA ter agora como proprietários figuras associadas ao conservadorismo extremo gera um efeito de auto-censura e temor. Equipes de desenvolvimento podem pensar duas vezes antes de propor personagens ou narrativas LGBTQ+ daqui em diante, perguntando-se se isso passaria na “nova EA”. A perda de talentos também é um risco: alguns profissionais podem não querer associar suas carreiras a uma empresa sob influência de um regime repressor, buscando oportunidades em lugares mais alinhados a seus valores.
Em última análise, somente o tempo dirá qual será o verdadeiro impacto. A indústria dos games nunca viu algo dessa magnitude. “Dinheiro nenhum troca de mãos nessa escala sem consequências” advertiu a Kotaku. Seja em termos de cultura corporativa (demissões, cortes de orçamento, projetos cancelados) ou de cultura de jogos (menos representatividade, visões criativas podadas), a aquisição da EA por um grupo tão controverso certamente marcará um antes e depois. “Não sabemos que impacto isso terá na EA, seus estúdios e suas franquias… mas neste momento, as coisas parecem sombrias”, concluiu o artigo.
Para os jogadores, especialmente os LGBTQ+ que encontraram nos mundos da EA um espaço de expressão, resta a esperança cautelosa de que os valores proclamados permaneçam de pé. Porém, com a raposa agora dentro do galinheiro, como apontam os mais críticos, será preciso vigilância da comunidade e cobrança contínua para que a diversidade e inclusão não sejam as próximas vítimas desse megainvestimento. O futuro da EA está em jogo, e muito mais do que apenas negócios, é a alma de algumas das franquias mais amadas que pode estar em disputa.
Fontes: Kotaku, PC Gamer, SimsCommunity, B9